sexta-feira, 27 de junho de 2008

A Menina e o Pássaro Encantado


Era uma vez uma menina que tinha um pássaro como seu melhor amigo. Ele era um pássaro diferente de todos os demais: Era encantado.

Os pássaros comuns, se a porta da gaiola estiver aberta, vão embora para nunca mais voltar.Mas o pássaro da menina voava livre e vinha quando sentia saudades...Suas penas também eram diferentes. Mudavam de cor. Eram sempre pintadas pelas cores dos lugares estranhos e longínquos por onde voava.

Certa vez, voltou totalmente branco, cauda enorme de plumas fofas como o algodão."- Menina, eu venho de montanhas frias e cobertas de neve, tudo maravilhosamente branco e puro, brilhando sob a luz da lua, nada se ouvindo a não ser o barulho do vento que faz estalar o gelo que cobre os galhos das árvores. Trouxe, nas minhas penas, um pouco de encanto que eu vi, como presente para você...".E assim ele começava a cantar as canções e as estórias daquele mundo que a menina nunca vira. Até que ela adormecia, e sonhava que voava nas asas do pássaro.

Outra vez voltou vermelho como fogo, penacho dourado na cabeça."... Venho de uma terra queimada pela seca, terra quente e sem água, onde os grandes, os pequenos e os bichos sofrem a tristeza do sol que não se apaga.Minhas penas ficaram como aquele sol e eu trago canções tristes daqueles que gostariam de ouvir o barulho das cachoeiras e ver a beleza dos campos verdes.E de novo começavam as estórias.

A menina amava aquele pássaro e podia ouvi-lo sem parar, dia após dia. E o pássaro amava a menina, e por isso voltava sempre.Mas chegava sempre uma hora de tristeza."- Tenho que ir", ele dizia."- Por favor não vá, fico tão triste, terei saudades e vou chorar...."."- Eu também terei saudades", dizia o pássaro. "-- Eu também vou chorar.Mas eu vou lhe contar um segredo: As plantas precisam da água, nós precisamos do ar, os peixes precisam dos rios... E o meu encanto precisa da saudade. É aquela tristeza, na espera da volta, que faz com que minhas penas fiquem bonitas.Se eu não for, não haverá saudades.Eu deixarei de ser um pássaro encantado e você deixará de me amar.Assim ele partiu. A menina sozinha, chorava de tristeza à noite, imaginando se o pássaro voltaria. E foi numa destas noites que ela teve uma idéia malvada."- Se eu o prender numa gaiola, ele nunca mais partirá; será meu para sempre. Nunca mais terei saudades, e ficarei feliz".Com estes pensamentos comprou uma linda gaiola, própria para um pássaro que se ama muito. E ficou à espera.

Finalmente ele chegou, maravilhoso, com suas novas cores, com estórias diferentes para contar.Cansado da viagem, adormeceu.Foi então que a menina, cuidadosamente, para que ele não acordasse, o prendeu na gaiola para que ele nunca mais a abandonasse. E adormeceu feliz.Foi acordar de madrugada, com um gemido triste do pássaro."- Ah! Menina... Que é que você fez? Quebrou-se o encanto. Minhas penas ficarão feias e eu me esquecerei das estórias...".Sem a saudade, o amor irá embora...A menina não acreditou. Pensou que ele acabaria por se acostumar. Mas isto não aconteceu.

O tempo ia passando, e o pássaro ia ficando diferente.Caíram suas plumas, os vermelhos, os verdes e os azuis das penas transformaram-se num cinzento triste. E veio o silêncio; deixou de cantar.Também a menina se entristeceu. Não, aquele não era o pássaro que ela amava.E de noite ela chorava pensando naquilo que havia feito ao seu amigo...Até que não mais agüentou.Abriu a porta da gaiola."- Pode ir, pássaro, volte quando quiser..."."- Obrigado, menina. É, eu tenho que partir. É preciso partir para que a saudade chegue e eu tenha vontade de voltar. Longe, na saudade, muitas coisas boas começam a crescer dentro da gente.

Sempre que você ficar com saudades, eu ficarei mais bonito.Sempre que eu ficar com saudades, você ficará mais bonita.

E você se enfeitará para me esperar...E partiu. Voou que voou para lugares distantes. A menina contava os dias, e cada dia que passava a saudade crescia."- Que bom, pensava ela, meu pássaro está ficando encantado de novo...".E ela ia ao guarda-roupa, escolher os vestidos; e penteava seus cabelos, colocava flores nos vasos..."- Nunca se sabe. Pode ser que ele volte hoje...Sem que ela percebesse, o mundo inteiro foi ficando encantado como o pássaro.Porque em algum lugar ele deveria estar voando. De algum lugar ele haveria de voltar

.AH! Mundo maravilhoso que guarda em algum lugar secreto o pássaro encantado que se ama...

E foi assim que ela, cada noite ia para a cama, triste de saudade, mas feliz com o pensamento.- Quem sabe ele voltará amanhã....E assim dormia e sonhava com a alegria do reencontro.


(Rubem Alves)


"Voe por todo mar e volte aqui pro meu peito"

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Eu Sei Mas Não Devia


Eu sei que a gente se acostuma.


Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor.

E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.

E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.

E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz.

E porque à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã, sobressaltado porque está na hora.

A tomar café correndo porque está atrasado.

A ler jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem.

A comer sanduíches porque já é noite.

A cochilar no ônibus porque está cansado.

A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir a janela e a ler sobre a guerra.

E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos.

E aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz.

E aceitando as negociações de paz, aceitar ler todo dia de guerra, dos números da longa duração. A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir.

A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.

A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o que necessita.

E a lutar para ganhar o dinheiro com que paga.

E a ganhar menos do que precisa.

E a fazer fila para pagar.

E a pagar mais do que as coisas valem.

E a saber que cada vez pagará mais.

E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com o que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes, a abrir as revistas e ver anúncios.

A ligar a televisão e assistir a comerciais.

A ir ao cinema, a engolir publicidade.

A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição.

À luz artificial de ligeiro tremor.

Ao choque que os olhos levam na luz natural.

Às besteiras das músicas, às bactérias da água potável.

À contaminação da água do mar.

À luta.

À lenta morte dos rios.

E se acostuma a não ouvir passarinhos, a não colher frutas do pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer.

Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.

Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.

Se a praia está contaminada, a gente só molha os pés e sua no resto do corpo.

Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana.

E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda satisfeito porque tem sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.

Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito.

A gente se acostuma para poupar a vida.

Que aos poucos se gasta, e que, de tanto acostumar, se perde de si mesma.


Marina Colasanti

segunda-feira, 23 de junho de 2008


MUDE


Mas comece devagar, comece na sua velocidade.

Sente-se diferente, em outra cadeira, no outro lado da mesa.

Mais tarde, mude de mesa.

Quando sair, ande pelo outro lado da rua, depois mude de caminho, ande por outras ruas, mais devagar, observando os lugares por onde passa.

Tome outros ônibus, se for o caso.

Mude por uns tempos o estilo das roupas, dê os seus sapatos velhos, procure andar descalço por uns dias.

Tire uma tarde livre para passear no parque ou na praia.

Saia sozinho para ouvir o canto dos pássaros.

Veja o mundo de outras perspectivas.

Abra gavetas e portas com a mão esquerda.

Durma no outro lado da cama.

Depois, de ponta-cabeça.

Assista a outros programas de tv, compre outros jornais, leia outros livros, viva outros romances. Troque de carro.

Não faça do hábito um estilo de vida. -

Ame a novidade.

Corrija a postura, faça ginástica, durma mais tarde, ou acorde mais cedo.

Aprenda uma palavra nova por dia numa outra língua.

Escolha novas comidas, temperos, cores, diferentes delícias.

Experimente a gostosura da pouca quantidade. -

Tente o novo todo dia. O novo lado, o novo método, o novo jeito, o novo sabor, o novo prazer, o novo amor. - A nova vida.

Faça novos amigos, mantenha novas relações, almoce em outros lugares, vá a outros restaurantes, tome outros tipos de bebida, compre pão em outra padaria.

Almoce mais cedo, jante mais tarde - ou vice-versa.

Escolha outro mercado, outra marca de sabão, novos cremes.

Tome banho em horários variáveis. Use canetas de outras cores.

Vá passear em outros lugares. (Comece agora uma viagem para bem longe do aqui.)

Faça amor de modos diferentes.

Troque de bolsa, de carteira, de malas. compre novos óculos, escreva outras poesias, jogue fora o despertador.

Abra conta em outro banco.

Vá a outros cinemas, novos cabeleireiros, outros teatros.

Visite novos museus. -

Mude.

Você conhecerá coisas melhores e coisas piores do que as já conhecidas, mas não é isso o que importa.

O mais importante é a mudança, o movimento, o dinamismo, a energia.

Dessa forma, apenas dessa forma - você viverá. -

Só o que está morto não muda!